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As letras publicadas referem a fonte de extração, ou seja: nem sempre são mencionados os legítimos criadores dos temas aqui apresentados.
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* 7.140 LETRAS <> 3.082.000 VISITAS * FEVEREIRO 2024

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Prece à noite

Torre da Guia / Manuel dos Santos
Repertório de Fernando João

Que a noite seja leito de ventura
Em cada coração despedaçado
Que a noite seja fonte de ternura
Nas trevas de quem vive abandonado

Tragam-me a noite inteira numa taça
E um vinho de verdade que me aqueça
A noite é mensageira e por desgraça
Só vive de saudade quem regressa

E muito-muito antes que amanheça
Que exista ainda um fado por fadar
E que um par de amantes adormeça
Nos braços dum pecado por pecar

Que a noite seja rumo e caminho
Jornada de regresso à felicidade
Que a noite seja lar, seja cantinho
De paz, de amor, de liberdade

Envelhecer em Lisboa

Carlos Baleia / Daniel Gouveia
Repertório de Linda Leonardo 

Sinto a cidade 
Em passos que vou cumprindo
No avançar da idade
Em sonhos que vão caindo
E a saudade 
Colada nos meus cansaços
Segue o rumo dos meus passos
A falar da mocidade

No empedrado 
Vou lendo histórias antigas
Livro magoado
Que inspira suas cantigas
Ouvem-se os sinos 
Das igrejas do Chiado
E os meus passos peregrinos 
São ecos do meu enfado

Sinos de fado
Estranha oração de Lisboa
Um som salgado 
Na cidade de Pessoa
Poema ouvido
Soluço que dobra a esquina
E é repetido de colina p'ra colina

Peso nos ombros
Água nos olhos saudosos
Dos meus escombros 
Relembro tempos viçosos
Ao caminhar nesta viela escondida
Sem partir e sem chegar
Cumpro meus passos na vida

O rio do meu sonho

José Fernandes Castro / Armando Machado *fado marana*
Repertório de Rute Rita 

O rio do meu sonho já secou
Agora só existo neste fado
O mar onde o meu barco navegou
Tem ondas de prazer desencantado

O rio do meu pranto, tem agora
O sal da solidão e do tormento
A vida já não tem data nem hora
Pois tudo se resume ao sofrimento

O rio transbordante do meu peito
Não tem o encantamento das marés
Meu sonho, já distante e já desfeito
Não tem a cor do amor com que me vês

Mas mesmo assim, eu quero que o meu rio
Naufrague, no teu mar encapelado
E vá beijar a proa dum navio
Que trago a navegar neste meu fado

Sé velhinha

Américo Costa / Isidro Batista
Repertório de João Correia 
Este tema foi também gravado com o título "Passo à Sé"

Passo à Sé já de noitinha 
Vou encostar-me ao pelouro
Tranquila em sonho ledo
Vejo a Ribeira rainha 
Enamorar-se do do Douro
Dando ciúme a Barredo

E a Maria Manuela 
Com o seu xaile traçado
À modinha afadistada
No chão se ajoelha e reza 
E pôs-se a cantar o fado
Até alta madrugada

Eu quero viver sempre na Sé
Porque tu, Sé
És o meu torrão amado 
Tu, Sé velhinha
És o meu berço sagrado
E do Porto és a rainha
E és rainha do fado

Vejo o Chico de samarra 
E calça à boca de sino
Isto, às três da madrugada
Leva consigo a guitarra 
E já ébrio, quase sem tino
Cambaleia na calçada

Eu vejo o Fá e a amante 
Em sincera comunhão
Embora dois plebeus
Eu vejo a lua distante 
A cair  na imensidão
E à Sé dizendo adeus

Para sempre

Carlos Baleia / Daniel Gouveia
Repertório de Daniel Gouveia 

Nasceu o amor, nos dias de escola
Ela era traquina, ele, um mariola
E assim se olhavam, num jeito maroto
Amor da menina, paixão do garoto

Corações gravados em muito jardim
Num dia de sol, disseram que sim
E a gente sabia qual era o destino
Num dia de chuva, nasceu um menino

E foram marchando, vencendo a batalha
Sabendo sorrir, desculpando a falha
E em seus olhares não morre o desejo
Que as breves zangas acabam num beijo

A velha menina e seu rapazola
De cabelos brancos, já não vão à escola
E é coisa bem rara passear pela rua
Mas o amor de sempre neles continua

Há choro na Mouraria

Carlos Baleia / Daniel Gouveia *fado naifa*
Repertório de Daniel Gouveia 
Este poema também foi gravado por Daniel Gouveia 
na Marcha do Manuel Maria de Manuel Maria Rodrigues

Certa noite violenta
Frente à taberna sebenta
Uma navalha matou
Na rua do Capelão
Dois homens foram ao chão
Mas só um se levantou

Gritos da mesma mulher 
Que se dava a um qualquer
Soaram pelo desgraçado
E desfizeram-se em pranto 
Nunca ninguém soube quanto
Junto ao corpo trespassado

Ele fora um marinheiro 
Que num gesto cavalheiro
Quis defender a Severa
Da arremetida de um faia 
Malvado, que de atalaia
Por ela ficara à espera

Coisa nova para ela 
Ter recebido a tutela
De um homem que ia a passa
E a fadista, comovida 
A dura mulher da vida
Só lhe agradece a chorar

A luz dum grande amor

José Fernandes Castro/ João Maria dos Anjos
Repertório de Rute Rita 

Desliga a luz da tristeza
E dá-me a claridade
Desse teu olhar feliz
A cor da tua beleza
Tem a mesma intensidade
Do amor que eu sempre quis

Desliga a luz e sossega
Nos braços deste prazer 
Que me sufoca no peito
Este peito que se entrega
Ao suave amanhecer 
Deste nosso amor perfeito

Desliga a luz do luar
E vem comigo provar 
Os sonhos da sedução
Em nome do amor profundo
Temos toda a luz do mundo 
E o mundo na nossa mão

Num bar

Domingos Gonçalves Costa / Eugénio Pepe
Repertório de Tony de Matos

De bar em bar
Bebida atrás de bebida
Foi assim a minha vida
Meses, tentando esquecê-la
Mas era à noite
Que a minh'alma incompreendida
Por entre a noite perdida
Louca, corria atrás dela

Ninguém suponha
Que um homem que adora e quer
Poderá sentir vergonha
Por gostar duma mulher
Pode chorar
Pode sentir-se infeliz
Ao fazer como eu já fiz
Esconder suas dores num bar


Na imensidão
Desse bar, só uma imagem
P'ra me tirar a coragem
Surgia na escuridão
Imagem bela
Que eu adoro e no entanto
Eu estava ali para um canto
Louco, tentando esquecê-la

P’ra me livrar da saudade

Mário Rainho / Frutuoso França *fado jovita*
Repertório de Fernando Jorge 
Esta melodia que aparece como sendo o Fado Jovita 
é o Fado Moreninha de Santos Moreira

Desculpem, que a saudade não me deixa
E não me sai da alma, onde se abriga
Já fiz ao coração, tanta vez, queixa
Mas esse pobre louco não me liga

Bem tento excomungá-la do meu peito
Da boca, aonde sobe a toda a hora
Mas, a saudade sempre arranja jeito
Desculpas pra ficar, não ir embora

Se acamo, os meus lençóis, pra dormir
Logo ela toma conta d’almofada
E possui os meus sonhos, a sorrir
Desperta-me por tudo e até por nada

Mas hei-de arranjar modo de despejo
Para a arrancar de mim, forçosamente
Nem que, pra isso, engane o seu desejo
E vá viver contigo, novamente

Anjos caídos

Fernando Campos de Castro / Pedro Rodrigues
Repertório de Paulo Cangalhas

Nesta hora de partida
Será tempo de ficar
Neste desejo que abrasa
Dois amantes sem ter casa
E sem ter onde morar

Fiquemos à beira-esquina 
Onde a noite se insinua
Depois que tudo adormeça 
E a cidade nos ofereça
O quarto aberto da rua

Com lençóis de neblina 
Sob a luz dum candeeiro
Boca na boca em ternura 
Seremos corpo em loucura
Bem maiores que o mundo inteiro

Como dois anjos caídos 
Nas pedras negras do chão
Dormiremos já cansados 
Com os corpos abraçados
Em forma de coração

Fado nocturno

Feijó Teixeira / Francisco José Marques *fado zé negro*
Repertório de Amália 
Tema gravado por Carlos do Carmo com o título *Rodam as quatro estações*

Rodam as quatro estações
Dá lugar o sol à lua
Cai a noite sem pregões
E nós ficámos na rua
A escutar dois corações
Que dizem que vou ser tua

Podes dizer-me um adeus 
E olhar-me com desdém
Eu sei que não serás meu
Só quero que todo o bem
Que agora mesmo morreu
Não o dês a mais ninguém

Cegam-me as luzes perdidas
Que se escondem p’la cidade
Horas mortas já vencidas
Doem-me as dores da saudade 
E das saudades fingidas
De quem finge ter saudades

Depressa, vem depressa

Diogo Clemente / Manuel Mendes
Repertório de André Vaz 

Depressa, vem depressa ter comigo
Antes que eu escreva aquilo que não quero
Beijos que ficam dores, o quadro antigo
Que impele teimosamente ao desespero

Depressa, com a força das marés
Banha-me a praia, salga a minha areia
P’ra que eu esqueça do amor o seu revés
E a voz suave e rouca da sereia

Depressa, vem beijar-me como dantes
Guarda-me a alma, sou eu que te chamo
Falei co’a solidão há uns instantes
E tanto ódio te tenho, como te amo

Depressa, leva a dor do pensamento
Que assim que eu te abraçar já não interessa
O tudo que hoje quero é o momento
Depressa meu amor, vem mais depressa

Fado na palma da mão

Diamantina e Tiago Santos / Popular *mouraria estilizado*
Repertório de Diamantina 

Não sei se é fado ou sina
Ou se é sina este fado
Que trago desde menina
Na palma da mão, gravado

Sonhei viver p’ra cantar 
E p’ra te ter a meu lado
Ninguém me soube contar 
De ciúmes morre o fado

Sem pedir, prendeu-me a si 
Deixou-me presa em vontade
E agora guardo de ti 
Somente a terna saudade

Deve ser este o meu fado 
Saber ao fado dar sina
Pois continua gravado 
Nas minhas mãos de menina

Casario

Vasco Graça Moura / José Campos e Sousa
Repertório de António Pinto Basto 

Em Lisboa eu prefiro o casario
Que se narcisa visto da outra banda
No espelho às vezes turvo deste rio
Na limpidez do rio às vezes branda

É entre o mar da palha e o bugio
Que o renque das fachadas se desmanda
Em tons de porcelana ao desafio
Em cada patamar, cada varanda

E a luz de água e azul a derramar-se
Vem envolver-lhe o vulto refletido
Dar-lhe o contraste de uns ciprestes, dar-se
Como um banho lustral e desmedido

É véu de gaze leve o seu disfarce
Mas é tão ténue e frágil o tecido
Que pode acontecer que ainda o esgarce
Um voo de gaivotas esquecido

Então seu corpo sob o véu rasgado
Terá uma outra luz densa e leitosa
Translúcida nudez do compassado
Coração da cidade branca e rosa

Gente do mar

João Dias / Casimiro Ramos *fado três bairros*
Repertório de Rodrigo 

Eu nasci olhando o mar
Com movimento de gente
Remando contra a maré
Mas no duro mourejar
Não deixa de olhar de frente
A vida tal como é

Gente com a pele curtida
Queimada de sol e sal 
No rigor dos temporais
Vidas lutando pela vida
Longe deste vendaval 
De lutas para cá do cais

Eu nasci ouvindo o vento
Em fragas e areais 
Soprando em velas redondas
Aprendi corpo ao relento
Entre moços e arrais 
O alfabeto das ondas

Gente para quem o norte
É o pão de cada dia 
E diz só o que é preciso
O pão às vezes é morte
E o mar quando se arrelia 
Quase nunca traz aviso

O palhaço

Autor desconhecido / Amadeu Ramim *fado zeca*
Repertório de José Manuel Barreto 

Foi na pista dum circo, certo dia
Um famoso palhaço trabalhava
E o publico em delírio e alegria
Não nota que na pista alguém chorava

Dada por finda a sua atuação
Do público se despede o artista
Mas nisto uma estrondosa ovação
Exige que o palhaço volte à pista

Ao longe ouviu-se a voz dum garotinho
Que o rir de muita gente interrompeu
Dizendo; vem depressa meu paizinho
Porque a minha mãezinha já morreu

Abraçado ao petiz a soluçar
O palhaço caiu por sobre a pista
Então ouviu-se o público a gargalhar
Pensando ser trabalho do artista

O palhaço levantando-se se ergueu
Dizendo para todos com voz forte
A mulher que eu mais amo já morreu
E vós estais a rir da sua morte

O garoto que eu agora muito abraço
É tudo quanto resta do meu lar
Por isso tenham pena dum palhaço
Que leva a vida rir pra não chorar

Campa florida

Carlos Macedo / Popular *fado menor*
Repertório de Carlos Macedo 

Numa noite de luar
Eu quis visitar alguém
Sozinho eu fui rezar
À campa de minha mãe

Eu à campa me abracei
Lamentando a sorte minha
O que na vida serei
Sem ti, minha mãezinha

DECLAMADO
Venho aqui p’ra te dizer 
Que vivo sem ter ninguém
Quem na vida uma mãe perder 
Perde pois, tudo o que tem

Ainda me lembro bem 
Quando eu te disse adeus
Custou-me muito, também 
Ver fechar os olhos teus

E agora, adeus mãezinha 
Vou-te deixar, novamente
Tu em tempos foste minha 
E partiste para sempre

Eu a campa abandonei
Deixando-a bem florida
Com as lágrimas que chorei
Por minha mãezinha querida

A moldura dos meus olhos

Carlos Conde / Túlio Pereira da Silva
Repertório de Manuel Fernandes

Quando ela chega à janela
Logo o olhar dela tudo alumia
Seus olhos são dois faróis
Que lembram sois durante o dia

No Bairro Alto onde mora
Ela que adora goivos, roseiras
É a graça, a formusura
Duma moldura de trepadeiras

Naquele primeiro andar 
Da Travessa da Queimada
Mora a luz do meu olhar 
Nos olhos da minha amada
O seu olhar encantador 
Vivo, travesso, ladino
São duas rimas do amor 
No fado do meu destino

Sem ela a noite persiste
Tem luz mais triste, cor mais sombria
Pois é quando o olhar dela
Chega à janela, que nasce o dia

Andou na marcha, bailou
Dançou, cantou fados, canções
E eu durante a noite toda
Dancei à roda de dois balões

Pensando à noite

Letra e música de Hélder do Ó
Repertório de autor

O som da noite embalava a minha cama
Quando vesti de ti, meu pensamento
Ardia em mim aquele fogo, aquela chama
Desse desejo inflamado que sustento
       
Porque és a mentira que eu quisera verdade
És o meu tempo inteiro de saudade
És a razão que não tem razão de ser
És a vontade que eu tenho de te ter;
És a força que ainda me suporta
És quem eu quero ver quando abro a porta
És aquela maravilha que sonhei
És a canção que adoro e que não sei

No meu silêncio oiço o som da tua voz
Que me serviu de companhia a noite inteira
Trago comigo aquela mágoa que há em nós
E aquela estrela que foi nossa companheira

És a música que me entra no ouvido
És o tema do meu cantar dolorido
És a espera impaciente mas esp’rançada
És o frio que sinto quando é madrugada;
És a felicidade porque há tanto espero 
És a minha vida toda porque eu quero

Minha mãe minha querida

Rui Rocha / Amadeu Ramim *fado zeca*
Repertório de Francisca Gomes

Eu quero que este fado seja o seu
Por tudo o que me deu nesta vida
Que seja agradecida como eu
Por ser eternamente a mais querida

Ser mãe não lhe bastou no dia a dia
O muto era para si tão pouco ou nada
Que dava tudo com tal alegria
Apenas por saber que era amada

O tempo fez mais forte o nosso amor
E cada abraço mais que só ternura
As lutas que travou sem temor
Fizeram-me sentir sempre segura

É minha mãe, e eu quero-lhe dizer
Cantando com carinho e emoção
O quanto é meu orgulho, meu viver
Meu mundo mundo, meu bater do coração

Canto de ternura

Sérgio Marques / Francisco José Marques *fado zé negro*
Repertório de Sérgio Marques                   

Se dizem do fado, louco
Deixem-me cantar um pouco
Pois eu gosto dele assim
Seja alegre ou magoado
Quero sentir no meu fado
A loucura que há em mim

E canto sempre a meu jeito
Mesmo quando neste peito
Habitam tristeza e dor
Que me importa essa loucura
Se é nele que encontro a cura
Para os meus males de amor ?

Se é louco então este fado
Que escutamos com agrado
Mesmo quando há pouca voz
Dendita seja a loucura
Deste canto de ternura
Loucos somos todos nós

Não vale a pena

Letra e música de João Nobre
Repertório de Carlos Ramos

Se este amor, chama apagada
Não é mais nada que uma lembrança
Nele queimei ilusões
Os meus sonhos, minha esperança

Se a fogueira já não arde
Agora é tarde, crê que é verdade
Em nós resta, quem diria
Apenas triste e fria
A cinza da saudade

Não vale a pena
Coração, basta de teima
Chama de amor que não queima
De nada serve atear
Não vale a pena
O amor é uma fogueira
Que só arde a vida inteira
Se tem lenha p’ra queimar

Muitas vezes o ciúme
Feriu como lume o nosso amor
Mas nem sempre a maior chama
É a que dá mais calor

Hoje resta abandonada
Chama apagada que emudeceu
E à lareira que a guardou
Olhando-a fria e só
Apenas tu e eu

Fado falado

Aníbal Nazaré / Nélson de Barros / António Barbosa

Fado triste… 
Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa 
Leva mais tempo a passar
Ouve-se a voz
Voz inspirada duma raça
Que mundo em fora nos levou 
P’lo azul do mar
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar

Mãos doloridas na guitarra 
Que desgarra dor bizarra
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes, impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Onde há traição, ciúme e morte
E um coração a bater forte

Uma história bem singela;
Bairro antigo, uma viela
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude 
Que a própria Rosa Maria
No dia de procissão 
Da Senhora da Saúde

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe
Trazia-os ele do mar
Eram bravios e salgados
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela 
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinhos
Que os sapatos dele e dela 
Dormiam muito juntinhos 
Debaixo da mesma cama

P’la janela da Emília entrava a lua
E a guitarra à esquina duma rua 
Gemia, dolente a soluçar

E lá em casa:
Mãos amorosas na guitarra 
Que desgarra a dor bizarra
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher 
Para o despir e para o beijar

Mas um dia:
Mas um dia santo Deus
Ele não veio
Ela espera olhando a lua
Meu Deus, que sofrer aquele
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
Mas não marca
Mas não marca a sombra dele

Procurou-o como doida 
E ao voltar duma esquina
Viu-o a ele acompanhado
Com outra ao lado de braço dado
Gingão, feliz, rufião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha 
O que resta dum cigarro

Lume e cinza na viela
Ela vê, que homem aquele
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele

E então:
E o ciúme chegou como lume
Queimou o seu peito a sangrar
Foi como vento que veio 
Labareda atear 
A fogueira aumentar
Foi a visão infernal
A imagem do mal 
Que no bairro surgiu
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu

Correm em vertigem num grito
Direito ao maldito 
Que a há-de perder
Puxa a navalha, canalha
Não há quem te valha
Tu tens que morrer
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua
E cai um corpo sangrando 
Nas pedras da rua

Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor
Mãos que o fado compreendem 
E entendem sua dor
Mãos que não mentem 
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar

E pouco a pouco 
O amor regressou
Como lume queimou 
Essas bocas febris
Foi um amor que voltou 
E a desgraça tocou 
Para ser mais feliz
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida 
De novo a surgir
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir

Há gargalhadas no ar 
E o sol a vibrar 
Tem gritos de cor
Há alegria na viela 
E em cada janela 
Renasce uma flor
Veio o perdão e depois 
Felizes os dois 
Lá vão lado a lado
E digam lá se pode ou não 
Falar-se o fado